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O que faz a Autoridade Nacional de Proteção de Dados

por | 24/02/2021 | Artigos, Digital

Agência tem como objetivo fiscalizar o cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados. Três dos cinco diretores são militares

O Senado sabatina nesta segunda-feira (19) os nomes indicados pelo presidente Jair Bolsonaro para a diretoria da ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), agência que fiscaliza o cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados , que passou a valer no país todo em setembro.

Dos cinco membros da diretoria, três são militares, reforçando uma tendência de membros das Forças Armadas que já é vista em outras esferas do governo Bolsonaro.

Os nomes são: Waldemar Gonçalves Ortunho Jr. (diretor-presidente); Arthur Sabbat (diretor); Joacil Basílio Rael (diretor); Miriam Winner (diretora) e Nairane Farias Rabelo (diretora).

Ligado à Presidência da República, a ANPD teve sua criação aprovada por meio de votação na Câmara ocorrida em maio de 2019. Além da diretoria, está prevista a criação de um Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e Privacidade, que terá 21 membros escolhidos por Bolsonaro, pelo Congresso, pela sociedade civil, pelo Conselho
Nacional de Justiça, pelo Comitê Gestor da Internet, pelo Ministério Público e por empresários.

As atribuições do órgão
De acordo com a lei 13.853 , sancionada por Bolsonaro em 8 de julho de 2019, cabe às duas frentes da ANPD:
● Zelar pela proteção dos dados pessoais
● Zelar pela proteção de dados que dizem respeito a segredos comerciais e industriais
● Promover à população o conhecimento das normas e políticas públicas relacionadas à proteção de dados
● Elaborar diretrizes para as políticas públicas relacionadas à proteção de dados
● Fiscalizar o cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados

A Lei Geral de Proteção de Dados regula as operações realizadas pelos setores público e privado com dados pessoais, como coleta, uso e armazenamento desse tipo de dado, de forma que o direito à privacidade e outras garantias individuais sejam preservadas.

Originalmente, a lei deveria ter entrado em vigor em 2019, porém, uma série de adiamentos fez com que ela só começasse a valer em setembro de 2020 , quando foi sancionada por Bolsonaro.

Cabe à ANPD aplicar sanções em caso do descumprimento da lei, que incluem advertências, multas e bloqueios ou exclusão de dados pessoais da base de informações da empresa ou órgão que cometeu a irregularidade. As penalidades, contudo, só poderão ser aplicadas a partir de agosto de 2021, para que os setores público e privado tenham algum tempo para se adequar à nova legislação.

O perfil dos indicados
A presença militar em órgãos ligados à proteção de dados digitais só ocorre na China e na Rússia , de acordo com uma análise dessas instituições em 20 países feita pelo Observatório da Privacidade, plataforma que monitora e analisa os debates públicos ligados ao tema.

Coronel reformado, Waldemar Gonçalves Ortunho Jr, indicado por Bolsonaro para ser diretor-presidente da ANPD, é o atual presidente da Telebras, estatal de telecomunicações vinculada ao Ministério das Comunicações. Aprovado pelo Senado, terá um mandato de seis anos. Um de seus ex-assessores, o militar reformado Joacil Basílio Rael, também foi indicado à diretoria da agência para um mandato de quatro anos.

Tenente-coronel reformado, Arthur Sabbat, indicado para ser diretor da nova agência para um mandato de cinco anos, atualmente comanda o departamento de segurança da informação do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.

Os três militares contam com formação ligada a sistemas digitais e segurança da informação em duas instituições vinculadas às Forças Armadas: a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (Rael) e o Instituto Militar de Engenharia (Ortunho Jr. e Sabbat).

Miriam Wimmer é diretora de políticas públicas de telecomunicações e acompanhamento regulatório no Ministério das Comunicações. Também é professora de direito digital e inovação no Instituto Brasiliense de Direito Público. Se aprovada, terá um mandato de dois anos.

Representando o setor privado por um mandato de três anos, Nairane Farias Rabelo é advogada especializada em direito digital, sócia do escritório paulista de advocacia Serur Advogados.

Os diretores da ANPD têm mandato fixo de quatro anos. A primeira leva de nomes, porém, conta com mandatos de que vão de dois a seis anos. A justificativa dada pelo governo é de que a duração variada tem como objetivo proporcionar uma renovação gradual do conselho.

Apesar de ter vínculos com o Palácio do Planalto, a ANPD tem, em sua formulação, autonomia e independência garantidas, e pode se tornar uma autarquia a partir de 2022, a critério do governo.

Três análises sobre o tema
O Nexo entrou em contato com três especialistas em direito digital e privacidade em busca de análises sobre a indicação dos dirigentes. São elas:
Nuria López , advogada especializada em direito digital e sócia do escritório de advocacia Daniel Advogados
– Marina Pita , coordenadora executiva do Intervozes , coletivo ativista que advoga pelos direito relacionados à comunicação
– Bruna Martins dos Santos , coordenadora de incidência da associação de pesquisa Data Privacy Brasil

Como você avalia o perfil dos dirigentes escolhidos para a ANPD?
Nuria López O perfil dos dirigentes escolhidos é eminentemente de segurança da informação e embora seja um tema importante, não é o objetivo da lei.
A LGPD tem como objetivo a proteção dos titulares dos dados. É uma lei que estabelece garantias à população sobre a proteção de seus dados pessoais. A ANPD precisa assegurar esses direitos fundamentais.

Marina Pita Os selecionados majoritariamente não são profissionais que têm se debruçado a estudar, compreender e formular acerca do complexo fluxo de dados pessoais na atual conjuntura conectada e convergente. Claro que podem ser pessoas altamente competentes em suas áreas de atuação. O presidente da ANPD, por exemplo, é um homem da engenharia de redes de telecomunicações.
Além do conhecimento específico sobre fluxo de dados, a ANPD precisará ter boa formação em direitos fundamentais e defesa do consumidor e, considerando os nomes indicados, este não parece ser o caso.

Bruna Martins dos Santos Acredito que o conjunto dos nomes indicados apresenta uma mistura interessante de diretores com experiência em áreas diversas, ainda que com uma maior expertise na área de telecomunicações. Como a proteção de dados pessoais é uma área nova, é natural esperar diversidade de trajetórias, habilidades e
competências.
Dentre os nomeados, acho que o currículo que mais merece atenção é o da Miriam Wimmer, que conta com anos de experiência em regulação de tecnologias da informação e participou de processos relevantes para a regulação da Internet no brasil como o Marco Civil da Internet e seu decreto regulamentador e o anteprojeto de Lei que resultou na Lei Geral de Proteção de Dados, bem como a Estratégia Nacional de Inteligência Artificial e de Internet das Coisas.

Quais os efeitos de uma presença majoritariamente militar no órgão?
Nuria López A maior preocupação é a de garantir a independência da ANPD para que o Brasil possa ser considerado um país com nível adequado de proteção de dados, o que é importante para a entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e para fomentar transações comerciais com outros países, por exemplo.
A ANPD deve ser independente, inclusive na fiscalização dos atos do governo sobre proteção de dados. A questão é saber se um órgão majoritariamente militar será independente na fiscalização do próprio governo ou se estará submetido a ele.

Marina Pita Certamente o maior temor de uma ANPD militarizada é a confusão entre a segurança da informação, políticas de defesa, a proteção de dados pessoais e o direito a autodeterminação informativa, o poder de determinar e controlar o uso dos próprios dados. Certamente a política de defesa cibernética é muito relevante, mas não é o foco da ANPD.

Bruna Martins dos Santos Confirma uma tendência do governo em ter militares ocupando os mais altos postos do executivo.
Apesar da sabatina no Senado ajudar a esclarecer algumas dúvidas e questões sobre os indicados – e suas competências -, o número de menções às pautas de segurança cibernética e da informação, bem como a proteção de informações estratégicas, confirma algumas preocupações iniciais colocadas por entidades do terceiro setor, setor
privado e academia sobre eventuais confusões.

Nesse sentido, em sendo a ANPD o órgão que terá um papel fundamental na construção de parâmetros normativos, instruções e recomendações que orientem a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados em todo o país, saber conceber as diferenças na dicotomia entre tratamento de informações pessoais e atividades de segurança
cibernética será um desafio fundamental para garantir a imparcialidade e autonomia do órgão.

A esse respeito, a lógica do sigilo – algo comum e bastante enraizado no campo de segurança cibernética – é algo que não casa com a proteção de dados, que tem a transparência como um dos seus princípios. Nesse sentido, foi salutar a fala da diretora Nairane Rabelo Leitão de que a Autoridade precisará trabalhar em conjunto com a sociedade civil e o Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais.

 

Artigo publicado no Nexo. Leia aqui.

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