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Suspensão de direitos de propriedade intelectual é curandeirismo jurídico

por | 12/05/2021 | Artigos, Patentes

Proposta de suspensão de patentes de vacinas tende a ser ineficaz ou mesmo prejudicial

Para cada problema complexo, existe uma solução clara, simples, porém absolutamente equivocada[2]. Como noticiado[3], na última semana os Estados Unidos[4] demonstraram disposição em negociar proposta apresentada junto à OMC por Índia e África do Sul para que haja a suspensão das obrigações dos países-membros de garantirem direitos de propriedade intelectual “em relação à prevenção, contenção ou tratamento da COVID-19”[5]. A proposta, que não se confunde com o licenciamento compulsório já previsto em tratados internacionais[6] e na legislação brasileira[7], ainda carece de maior detalhamento, mas tende a ser ineficaz ou mesmo prejudicial no curto, médio e longo prazos. Se o objetivo for salvar vidas – e não gerar manchetes impactantes ou reconfortar agentes públicos com a enganosa sensação de dever cumprido –, soluções consensuais que envolvam os titulares de patentes seriam mais adequadas, pelas razões expostas a seguir.

Em abril de 2020, artigo publicado no The New York Times[8] consultou especialistas e explicou toda a complexidade envolvida na pesquisa e desenvolvimento de uma nova vacina. A matéria apontou, por exemplo, que as vacinas para HPV ou Rotavírus levaram 15 anos para serem criadas, e que, até então, o tempo mínimo para desenvolver uma nova vacina havia sido de 4 anos. O artigo indicou ainda que, se considerarmos o tempo médio de cada uma das fases do processo – pesquisa, fase pré-clínica, fases de teses 1, 2 e 3, construções de fábricas, aprovação regulatória, produção e distribuição –, não haveria vacinas para COVID-19 antes de 2033. Seria preciso, portanto, um esforço hercúleo para “atingir o impossível”: ter uma vacina disponível em 18 meses, isto é, em agosto de 2021.

Graças aos esforços que já haviam sido iniciados quando das pandemias de SARS e MERS[9], à colaboração entre a indústria de pesquisa, governos e autoridades regulatórias, sociedade civil e demais participantes da cadeia de suprimentos, a vacinação teve início, em alguns países, já no fim de 2020[10], apenas sete meses depois da publicação do referido artigo. Até o momento, já foram aprovadas e estão sendo amplamente utilizadas mais de meia dúzia de diferentes vacinas para COVID-19, com outras tantas em estágio final de desenvolvimento ou aprovação[11]. Em se tratando de ciência, seria injusto dizer que se tratou de um milagre, mas sem dúvida é um exemplo histórico da engenhosidade humana e de quão longe podemos chegar pela via da colaboração. Estima-se que, até o momento, cerca de 1,3 bilhões de doses já foram aplicadas, incluindo mais de 50 milhões de doses no Brasil[12].

Algumas empresas já se comprometeram a comercializar suas vacinas a preço de custo, isto é, sem auferir qualquer lucro, ao menos durante a corrente pandemia[13]. Isso se traduz em preços que não costumam superar três, cinco ou dez dólares por dose[14]. Mesmo dentre as empresas que não firmaram tal compromisso, os preços costumam ser inferiores ao de vacinas relativas a outras doenças[15], variando entre quinze e vinte dólares por dose – a despeito da maior complexidade e do maior custo que os processos de desenvolvimento e fabricação de certas vacinas da COVID-19 apresentam[16]. Isso se dá tanto por razões humanitárias, quanto pela existência de vacinas distintas no mercado – conforme assinalado, em tempo recorde foram desenvolvidas não apenas uma, mas diversas vacinas para enfrentamento à atual pandemia.

O governo brasileiro já firmou contratos para aquisição das vacinas Oxford-AstraZeneca e CoronaVac por valores que chegam a US$3,16/dose e cerca de US$11/dose, respectivamente[17],[18]. Mesmo que todos os 211 milhões de habitantes do país se disponham a tomar as duas doses recomendadas, a um custo médio de, digamos, US$10/dose, estaríamos diante de um gasto total de 22 bilhões de reais[19] – um valor considerável, naturalmente, mas que representa menos de 10% das despesas executadas somente no ano passado com o necessário auxílio emergencial, por exemplo[20], e da mesma ordem de grandeza que as despesas previstas anualmente com emendas parlamentares[21].

O sistema de patentes faz parte não apenas do arcabouço jurídico que incentivou o desenvolvimento de diferentes soluções técnicas em período tão curto de tempo, mas também da estrutura legal que permitiu a celebração de diversas parcerias para o desenvolvimento conjunto de certas vacinas, como o bem-sucedido caso BioNTech/Pfizer, e para a fabricação em larga escala de vacinas[22]. Isso é particularmente relevante no caso de vacinas mais complexas e sofisticadas, como as baseadas em vetores virais ou as vacinas genéticas de RNA mensageiro (mRNA). Sem a garantia de proteção à propriedade intelectual, é pouco provável, por exemplo, que a Fiocruz tivesse firmado acordo para fabricação da vacina Oxford/AstraZeneca com base em ingrediente farmacêutico ativo (IFA) produzido na China, e menos ainda que tivesse firmado recente acordo de transferência de tecnologia para que consiga fabricar o IFA em solo brasileiro, como noticiado em 7 de maio de 2021[23]. São negócios jurídicos que simplesmente não ocorreriam na ausência de um marco legal estável.

É legítimo que desejemos a disponibilidade da maior quantidade de doses de vacinas no menor intervalo de tempo possível. Questiona-se, no entanto, a efetividade da proposta de se desconsiderar direitos de propriedade intelectual para atingir tal fim.

Isso porque as dificuldades que vivenciamos atualmente com a fabricação e distribuição de vacinas nada têm a ver com o sistema de patentes, mas sim com questões práticas – semelhantes, aliás, às que causaram a falta de leitos ou mesmo de cilindros de oxigênio em diversos países, incluindo o Brasil[24]. As dificuldades se devem a problemas relacionados a cadeias de suprimentos, como a falta de insumos básicos (resinas, cloreto de sódio, filtros estéreis, lacres, seringas) e de equipamentos complexos (biorreatores); recursos humanos, incluindo dificuldades de deslocamento causadas pela pandemia; capacidade produtiva instalada; logística; complexidade do processo de fabricação de determinadas vacinas[25], entre outros.

Em especial, há ainda desafios regulatórios consideráveis. Vacinas são produtos biológicos (mais precisamente, imunobiológicos), bem mais complexos do que os medicamentos que normalmente encontramos nas farmácias e hospitais. Por conta disso, os produtos biológicos se submetem a regramento distinto (RDC 55/2010 da ANVISA)[26]. Diferentemente do que ocorre com medicamentos genéricos, o desenvolvimento de um produto biossimilar (que seria, grosso modo, o “genérico” de um produto biológico) e a elaboração dos estudos de comparabilidade necessários para obtenção do respectivo registro de comercialização costumam levar anos e demandar vultosos investimentos[27].

Em um ambiente de colaboração, em que se respeitem direitos de propriedade intelectual, é comum que haja parcerias não apenas para transferência de tecnologia, como a ocorrida com Fiocruz e Oxford/AstraZeneca, mas também para que o parceiro local possa rapidamente obter todas as autorizações necessárias para a fabricação do produto. Na ausência de direitos de patentes e de incentivos à colaboração, além da complexidade de desenvolver a tecnologia necessária para a fabricação da vacina, haveria barreiras regulatórias consideráveis para que terceiros de fato ingressassem no mercado, sendo certo que tais barreiras não poderiam ser flexibilizadas como se pretende fazer com os direitos patentários, dado que se impõem para garantia da segurança e da eficácia desses produtos.

Como exemplo, podemos citar o caso da Moderna, que em outubro de 2020 se comprometeu a não opor suas patentes relacionadas à COVID-19 contra qualquer um que fabricasse vacinas direcionadas ao combate da pandemia[28]. Sete meses depois, ninguém foi capaz de desenvolver a tecnologia necessária para fabricar a vacina desenvolvida pela Moderna, e muito menos de obter as aprovações regulatórias necessárias para tanto.

Percebe-se, portanto, que a suspensão de direitos de propriedade intelectual seria ineficaz, porque não reduziria os preços praticados, não resolveria os desafios práticos que dificultam o aumento da disponibilidade de doses, nem faria com que terceiros magicamente adquirissem os conhecimentos indispensáveis à fabricação de produtos que demandam tecnologias complexas ou tivessem condições de comprovar a segurança e eficácia de seus produtos[29].

Mais do que isso, a suspensão de direitos de patente poderia atrapalhar ou mesmo inviabilizar parcerias essenciais à superação dos atuais obstáculos e acabar reduzindo, ao invés de aumentando, o potencial de doses disponibilizadas. Ademais, tal medida representaria enorme desincentivo à inovação, algo particularmente negativo, dado que a demanda por novas vacinas e soluções técnicas seguirá existindo – ainda que não surjam novas variantes do vírus Sars-Cov-2, essa pandemia não foi a primeira a nos afligir, e nada indica que será a última.

Por fim, o processo de negociação junto à OMC demanda consenso entre os 164 países-membros e pode levar meses, com estimativas realistas indicando que dificilmente estariam concluídas antes da próxima Conferência Ministerial agendada para 30 de novembro[30].

Diante disso, soluções consensuais, que envolvam os titulares de direitos de propriedade intelectual, parecem ser mais adequadas. Em recente artigo publicado em 6 de maio de 2021 na Harvard Business Review[31], os autores Prashant Yadav (INSEAD) e Rebecca Weintraub (Harvard Medical School) indicam que nossos esforços para enfrentamento eficiente da pandemia, com ampliação da oferta de vacinas disponíveis, deveriam ter os seguintes focos: (i) melhora no fluxo de matéria-prima[32]; (ii) harmonização do processo regulatório[33]; (iii) expansão da capacidade de fabricação de vacinas[34]; e (iv) o estabelecimento de um infomediário da cadeia de abastecimento[35]. Não é simples, não é fácil, mas seria um bom começo.

[2] Frase atribuída ao jornalista americano H. L. Mencken.

[3] Ver https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57004132.

[4] Disponível em https://ustr.gov/about-us/policy-offices/press-office/press-releases/2021/may/statement-ambassador-katherine-tai-covid-19-trips-waiver.

[5] Disponível em https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=q:/IP/C/W669.pdf&Open=True.

[6] Art. 31 do Acordo TRIPS, anexo 1C ao Tratado de Marrakesh que criou a OMC, devidamente internalizado no Brasil pelo Decreto n. 1.355/1994.

[7] Artigos 68 a 74 da Lei n. 9.279/1996 (Lei da Propriedade Industrial).

[8] Ver https://www.nytimes.com/interactive/2020/04/30/opinion/coronavirus-covid-vaccine.html.

[9] O vírus SARS-Cov-2, causador da COVID-19, como o nome indica, é semelhante ao vírus SARS-Cov, guardando 80% de identidade a nível de nucleotídeos. WESTON, Stuart e FRIEMAND, Matthew. COVID-19: Knows, Unknowns, and Questions. Publicado em março de 2020 e disponível em https://msphere.asm.org/content/5/2/e00203-20.

[10] Em países como Israel e Estados Unidos, a vacinação teve início em dezembro de 2020 (https://www.bbc.com/news/world-us-canada-55305720, https://www.washingtonpost.com/nation/2020/12/14/first-covid-vaccines-new-york/ e https://en.wikipedia.org/wiki/COVID-19_pandemic_in_Israel).

[11] (i) Moderna, (ii) Pfizer-BioNTech, (iii) Sputnik V, (iv) Oxford-AstraZeneca, (v) CoronaVac, (vi) Johnson & Johnson, sem contar outras como Covaxin e Novavax, por exemplo (https://en.wikipedia.org/wiki/COVID-19_vaccine).

[12] Ver https://ourworldindata.org/covid-vaccinations e https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2021/05/09/brasil-aplicou-ao-menos-uma-dose-de-vacina-contra-covid-em-353-milhoes-de-pessoas-aponta-consorcio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml.

[13] AstraZeneca e Johnson & Johnson (https://www.theguardian.com/commentisfree/2021/mar/10/AstraZeneca-safe-covid-unprecedented-challenge e https://www.jnj.com/johnson-johnson-covid-19-vaccine-authorized-by-u-s-fda-for-emergency-usefirst-single-shot-vaccine-in-fight-against-global-pandemic).

[14] https://www.biospace.com/article/comparing-covid-19-vaccines-pfizer-biontech-moderna-AstraZeneca-oxford-j-and-j-russia-s-sputnik-v/ e https://www.managedhealthcareexecutive.com/view/the-price-tags-on-the-covid-19-vaccines.

[15] https://www.cdc.gov/vaccines/programs/vfc/awardees/vaccine-management/price-list/index.html.

[16] Ver nota de rodapé n. 13. Mesmo a complexa vacina desenvolvida pela Moderna tem sido comercializada a preços que podem variar entre 25 e 37 dólares por dose (https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/03/05/preco-da-vacina-da-moderna-pode-travar-acordo-com-o-brasil-diz-ala-do-governo).

[17] https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2021/02/01/verificamos-coronavac-vacina-oxford/.

[18] Ver https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/janeiro/07/sei_ms-0018477781-contrato.pdf.

[19] Assumindo uma taxa de conversão de R$5,23 por dólar, conforme cotação de 7 de maio de 2021 (Banco Central, ver https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/historicocotacoes).

[20] http://www.portaltransparencia.gov.br/programas-e-acoes/acao/00S4-auxilio-emergencial-de-protecao-social-a-pessoas-em-situacao-de-vulnerabilidade-devido-a-pandemia-da-covid-19

[21] Ver https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2021/04/21/com-acordo-sobre-orcamento-emendas-ficam-em-r-37-bilhoes.htm.

[22] https://www.wsj.com/articles/biontech-recruits-rivals-to-boost-covid-19-vaccine-production-11615640401.

[23] Ver https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-05/fabricacao-de-vacina-da-fiocruz-totalmente-no-brasil-comeca-dia-15.

[24] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55856813. Especificamente sobre a situação na Índia, ver https://www.dw.com/en/india-covid-oxygen-shortage/a-57425951.

[25] J. DAKIN. “Supply Chain Challenges Creating Hurdles to COVID-19 Vaccine Production,” Pharmaceutical Technology 45 (4) 2021. Disponível em https://www.pharmtech.com/view/supply-chain-challenges-creating-hurdles-to-covid-19-vaccine-production.

[26] Ver https://www.gov.br/anvisa/pt-br/setorregulado/regularizacao/medicamentos/produtos-biologicos.

[27] De 100 a 200 milhões de dólares, segundo estimativa de 2015 da Deloitte, ou algo entre 40 e 100 vezes mais do que o necessário para um produto genérico, por exemplo (https://www2.deloitte.com/content/dam/Deloitte/us/Documents/life-sciences-health-care/us-lshc-biosimilars-whitepaper-final.pdf).

[28] Veja compromisso assumido em 8 de outubro de 2020: https://investors.modernatx.com/node/10066/pdf.

[29] Nesse sentido, confira-se o detalhado posicionamento adotado pelo Instituto Max Planck de Inovação: https://www.ip.mpg.de/fileadmin/ipmpg/content/stellungnahmen/2021_05_07_Position_statement_Covid_IP_waiver.pdf.

[30] Ver https://www.reuters.com/world/china/vaccine-ip-waiver-could-take-months-wto-negotiate-experts-2021-05-06/.

[31] Yadav, Prashant; Weintraub, Rebecca. 4 Strategies to Boos the Global Supply of Covid-19 Vaccines. (Disponível em https://hbr.org/2021/05/4-strategies-to-boost-the-global-supply-of-covid-19-vaccines; acessado em 06.05.2021).

[32] Por exemplo, com o fim de barreiras à exportação.

[33] Com colaboração entre os órgãos de vigilância sanitária e o fim das exigências de realização de testes clínicos localmente, por exemplo.

[34] Além de citar a Operação Warp Speed (https://en.wikipedia.org/wiki/Operation_Warp_Speed) nos Estados Unidos, e de outras parcerias público-privadas como Gavi (https://www.gavi.org/) e CEPI (https://cepi.net/), os autores sugerem que a expansão da capacidade produtiva em países em desenvolvimento seria particularmente importante, possivelmente com a construção de fábricas flexíveis, que tivessem condição de produzir não apenas vacinas contra a COVID-19, mas também aquelas necessárias ao combate de outras doenças, como Zika, febre amarela, difteria, tétano, dentre outras.

[35] Infomediários são organizações cujo papel é coletar, analisar e processar informações para outras empresas, a fim de organizar a oferta e demanda de vacinas entre os países.

 

Artigo publicado no JOTA. Leia aqui.

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