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Possibilidade de cumulação de indenização em ações de nulidade de registro de marca

por | 18/01/2019 | Artigos, Marcas

A discussão sobre direitos de propriedade industrial, no âmbito judicial, gera, já há algum tempo, controvérsias acerca da cumulação de determinados pedidos que se destinam a competências diversas para suas respectivas análises. Embora aparentemente pacificado, o tema não deixa de receber questionamentos e o debate merece ser revisitado frente aos novos entendimentos da Justiça Federal do Rio de Janeiro sobre a natureza dos direitos gerados pelos atos do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), versando também sobre a posição da citada autarquia nas ações de nulidade.

Inicialmente, convém observar que o título (registro) que confere exclusividade de uso às marcas é expedido pelo Inpi, autarquia federal com finalidade específica para tanto, em decisão proferida em processo administrativo, conforme regulamentado pela Lei 9.279 de 1996 (LPI).

Entretanto, a validade desses atos administrativos está sujeita ao controle jurisdicional do Poder Judiciário, seja pela expressa previsão da LPI, mas também por sua própria natureza, conforme leciona José dos Santos Carvalho Filho[1], que ressalta a submissão à apreciação judicial da legalidade de atos administrativos como o corolário do princípio da legalidade, chamando a atenção para o fato de que “em relação aos atos vinculados, não há dúvida de que o controle de legalidade a cargo do Judiciário terá muito mais efetividade”.

Além disso, convém elucidar que a decisão do Inpi que concede o registro de uma marca, ao contrário do que alguns possam pensar, não se dá por força do poder discricionário do administrador, mas, segundo entendimento da doutrina e também da mais recente jurisprudência, decorre de atribuições de poder vinculado.

João da Gama Cerqueira[2], ao referir-se à natureza do ato de concessão, argumenta que a administração pública não pode fazê-lo ao seu arbítrio, devendo verificar as condições e pressupostos legais para a prática do ato de concessão do registro de uma marca. Justamente por isso, o citado doutrinador afirma que “a concessão dos privilégios e garantias industriais pertence à classe dos chamados atos vinculados ou executivos”.

Em julgado paradigmático sobre marcas, a ministra do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi[3] reafirmou a posição de que “a análise do INPI encontra-se vinculada aos parâmetros técnicos estabelecidos na Lei n. 9.279/96 e em suas próprias resoluções, sendo-lhe em princípio vedado negar registro a uma marca que preencha os requisitos legais”. A ministra também salienta em seu voto que “o próprio legislador reconheceu que, embora essa decisão envolva mérito administrativo, o ato deriva do exercício de uma discricionariedade vinculada, portanto sujeita a controle pelo Poder Judiciário”.

Isto porque a referida autarquia, gozando de suas prerrogativas para editar normas técnicas para preencher os conceitos jurídicos indeterminados contidos na lei, se vincula, na visão de alguns, à força normativa de suas próprias resoluções que complementam a lei, originadas em seu poder regulamentar (já que o Legislativo não poderia dispor sobre matéria de tamanha especificidade, como é a de uma autarquia desta natureza, a exemplo do que ocorre com as agências reguladoras), respeitado o entendimento de que estas resoluções não possuem a mesma força normativa das leis.

Portanto, dada esta vinculação de caráter técnico, forma-se o que é chamado pelas modernas doutrinas administrativistas e julgados mais atualizados como discricionariedade-vinculada ou, ainda, vinculação técnica. Isso posto, a análise do Poder Judiciário sobre a matéria não invadirá o âmbito da discricionariedade da administração pública, regido pela oportunidade e conveniência (mérito administrativo) para a prática do ato administrativo.

Desta forma, legitima-se a pretensão de ver anulado, judicialmente (sem prejuízo da análise na via administrativa), o ato administrativo que concede a propriedade da marca quando eventual particular se vê prejudicado e entende que tal decisão administrativa contraria as disposições legais ou não se encontra em conformidade com as diretrizes editadas pelo Inpi.

Desse contexto surge uma problemática. A ação utilizada para reclamar judicialmente a invalidade do ato busca uma prestação jurisdicional de natureza constitutiva negativa com efeitos retroativos. Ou seja, a titularidade da marca, quando cindida pelo Poder Judiciário, é tida por inválida e seus efeitos retroagem até a data da contestada concessão.

Esta ação anulatória, conforme disposições da Lei 9.279 de 1996, pode trazer em seu bojo pleito de antecipação de tutela para que, desde logo, o juiz suspenda os efeitos do registro da marca ou da patente, possuindo expressa previsão legal e sem objeção dos setores da doutrina e jurisprudência. Também é permitida a reparação dos danos causados pela infração dos direitos de propriedade industrial, inclusive pelo uso irregular de marca indevidamente registrada.

Entende-se, inclusive, que o dano ocorrido pela utilização indevida de marca equivocadamente registrada junto ao INPI incorre em in re ipsa, ou seja, “as perdas e danos, nos casos de uso indevido de marca, decorrem do próprio ilícito praticado pela ré”[4]. Sendo assim, a própria utilização da marca, por si só, já gera o dano sobre quem detém, legitimamente, sua titularidade.

Importante aqui salientar que o citado uso indevido deve ser considerado mesmo quando o Inpi atribuir ao infrator o título sobre a marca, uma vez que o presente estudo trabalha com os casos em que há vício de legalidade no ato da concessão e, mais ainda, com a natureza constitutiva negativa da decisão que anula o registro de marca, possuindo efeitos retroativos.

Por isso, dada a retroatividade da decisão que anula o ato, como se nunca tivesse sido praticado, é devida a indenização a ser arbitrada em juízo, surgindo a legitimação para o pleito indenizatório, que é onde surge a principal controvérsia: a possibilidade de cumulação do pleito indenizatório juntamente com o pedido anulatório do ato com a consequente abstenção de uso da marca.

A competência para o pleito anulatório, por se tratar de ato administrativo praticado por autarquia federal, devem ser processados e julgados perante juízo federal, conforme expressa previsão do artigo 109 da Constituição Federal de 1988. Por outro lado, a competência para pedidos de abstenção de uso e pagamento de indenização contra particular são de competência da Justiça estadual.

No entanto, a competência para a ação anulatória possui caráter absoluto, não sendo admitida sua prorrogação para os casos em que esta não prevê, pois “a incompetência absoluta não admite tal prorrogação. Afirme-se, desde logo, o que é prorrogação de competência: prorrogar a competência é tornar competente um juízo originariamente incompetente”[5].

Este é o grande problema da cumulação do pleito indenizatório, pois este, como é formulado, em tese, somente em face do particular que integra a demanda anulatória, encontra óbice na sua apreciação pela justiça federal, dada sua competência absoluta e improrrogável.

Curiosamente, a cumulação do pedido anulatório com a abstenção de uso já foi, há muitos anos, pacificada pelos tribunais, não sendo mais objeto de qualquer polêmica[6].

A própria LPI, ao dispor sobre a possibilidade de liminares em processos anulatórios de registro (artigo 173, parágrafo único[7]), expressamente viabiliza pedidos simultâneos de suspensão dos efeitos do registro impugnado e do uso da marca por seu titular, ou seja, que no bojo da ação anulatória seja formulado pedido até mesmo liminar voltado apenas contra o particular.

Sobre a cumulação com pedidos indenizatórios, entretanto, não há qualquer disposição legal hábil a afastar a problemática aduzida acima.

Contudo, recentes decisões da Justiça Federal do Rio de Janeiro vêm aparentemente flexibilizando o entendimento que leva a tal vedação, inclusive para ajustar a posição do Inpi nas demandas anulatórias, quando afirmam que “o título de propriedade deferido pelo instituto assume a condição jurídica de bem móvel do titular, não se confundindo com o ato administrativo do qual se originou, de modo que não há comunhão ou afinidade de interesses com o réu”[8].

Nesse ponto, sobre o direcionamento dos pedidos e sua influência na fixação de competência, é relevante analisar a posição processual do Inpi, como litisconsorte ou assistente, bem como seu interesse jurídico nos pedidos contra si formulados, pois esse talvez seja o ponto nodal em que se debruça a controvérsia sobre a cumulação do pedido indenizatório.

Conforme consta da recente Portaria JFRJ-POR-2018/00285, de 20/9/2018, ficou sedimentado, pelo menos por enquanto, na forma de seu artigo 1º, o entendimento de que “nas ações que visem anular a concessão de patente de invenção ou de modelo de utilidade, registro de desenho industrial ou registro de marca, o INPI, quando não for o autor, intervirá no feito, inicialmente, na qualidade de réu”.

Fabiano de Bem da Rocha[9], ao discorrer sobre o tema, equacionou a alocação processual do Inpi de forma a independer se é como assistente ou litisconsorte, para fins de atração da competência federal para dirimir o pleito indenizatório cumulado, afirmando que “em ambas as hipóteses estar-se-ia obedecendo ao critério de eleição da competência previsto no art. 109, I, da CF — interesse do INPI na causa — decorrente de sua obrigatória participação nessas ações”. Continua o citado autor, adentrando na questão da cumulação com o pleito indenizatório, argumentando que “o pedido de indenização, mesmo e ainda que não formulado contra ele, por ser sucessivo ao de anulação do direito, não constitui motivo por si só apto a implicar na incompetência da Justiça Federal”.

Com efeito, alguns respeitados doutrinadores entendem haver, inclusive, responsabilidade do Inpi sobre danos decorrentes de atos administrativos viciados, como a concessão equivocada de registros de marcas, inclusive sob a forma de direito de regresso do titular do registro irregular (obviamente, quando de boa-fé), o que corroboraria com a competência do Juízo Federal para apreciar tal pedido.

Portanto, ao deixar livre a interpretação sobre como o INPI participaria do feito, como se vê da redação genérica dos artigos 57, 118 e 175 da LPI, o citado doutrinador chegou à conclusão de que o interesse jurídico da autarquia deslocaria qualquer demanda (inclusive indenizatória) cumulada com o pedido anulatório para a esfera federal.

Nesse sentido, apesar de o STJ já ter se manifestado sobre a questão, sob o entendimento de não cabimento do pleito indenizatório na esfera federal[10], há divergências dentro do próprio tribunal superior e nas instâncias ordinárias, havendo recentes julgados do TRF-2 decidindo pelo cabimento da cumulação de pleito indenizatório mesmo quando formulado apenas contra o particular, conforme acórdão da 2º Turma Especializada, sob relatoria da desembargadora Simone Schreiber[11].

Conclui-se, então, que a própria divergência ainda existente no STJ e na Justiça Federal, em julgados relativamente recentes, trazem uma necessidade de revisita ao tema para uma abordagem à luz dos novos entendimentos acerca dos pedidos envolvidos e do direito discutido nas ações de nulidade de marcas, a fim de pacificar a questão e trazer maior segurança jurídica ao particular que quiser ingressar com uma única demanda formulando os pedidos de nulidade de registro de marca, abstenção de uso do sinal marcário equivocadamente registrado e, logicamente, a indenização pelos danos suportados pelo uso indevido da marca objeto do registro anulando.

______________________

[1] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 56.
[2] CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial: Da Propriedade Intelectual e do Objeto dos Direitos. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 101.
[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.162.281. Relatora ministra Nancy Andrighi. Disponível em:<https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200902075272&dt_publicacao=25/02/2013>. Acesso em: 25.fev.2014.
[4] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 101.118 Disponível em:<https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica> Acesso em: 26.ago.2014.
[5] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil – Vol. I. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 113.
[6] STJ, Segunda Seção, Recursos Repetitivos (Tema 950), REsp 1.527.232, min. rel. Luis Felipe Salomão, j. em 13/12/2017.
[7] Art. 173. A ação de nulidade poderá ser proposta pelo INPI ou por qualquer pessoa com legítimo interesse.
Parágrafo único. O juiz poderá, nos autos da ação de nulidade, determinar liminarmente a suspensão dos efeitos do registro e do uso da marca, atendidos os requisitos processuais próprios.
[8] REsp 1378699/PR, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. 07/06/2016, DJe 10/06/2016; REsp 1264644/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 28/06/2016, DJe 09/08/2016; AC 0086961-47.2015.4.02.5101, Rel. Des. Fed. Paulo Espírito Santo, 1ª Turma Especializada, j. 19/12/2017, e-DJF2R 19/01/2018.
[9] ROCHA, Fabiano de Bem da. Novos Temas de Processo Civil na Propriedade Industrial. <http://www.kasznarleonardos.com.br/noticias-e-publicacoes/artigos>. Acesso em 20.ago.2014.
[10] STJ, Quarta Turma, REsp 1.188.105, Min. Rel. Luis Felipe Salomão, j. em 05.03.2013, divergindo a Ministra Maria Isabel Gallotti que entendeu caber pleito indenizatório deduzido em face do Réu particular uma vez que seria pretensão legítima e consequência lógica do acolhimento das duas primeiras pretensões (anulatória e cominatória), não devendo o pedido por indenização ser formulado, dadas as circunstâncias, na esfera estadual, uma vez que se estaria impondo à Justiça Estadual o papel de mero liquidante dos danos resultantes do ilícito.
[11] TRF/2ª Região, Segunda Turma Especializada, Apelação Cível nº0102470-52.2014.4.02.5101, Desª. Relª Simone Schreiber, j. em 27.03.2017, divergindo o Desembargador Abel Gomes quanto à possibilidade de cumulação do pleito indenizatório na Justiça Federal, entendendo o referido Desembargador que, como o pedido de reparação de danos é formulado e dirigido tão somente ao particular, este não seria da competência do mesmo Juiz da esfera federal.

 

Artigo publicado no Consultor Jurídico. Leia aqui.

 

Artigo publicado em co-autoria com Paulo Armando

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