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O impacto das mudanças introduzidas na general food law europeia no regime de proteção de dados regulatórios confidenciais no Brasil

por | 02/12/2021 | Artigos, Patentes

Como os dados produzidos pelo inovador são protegidos, e uma parte deles permanece confidencial mesmo quando o seu aproveitamento por terceiros passa a ser permitido, a legislação somente autoriza o registro de produto equivalente com base nos dados anteriormente apresentados pelo inovador após o decurso de determinados prazos.

No ordenamento jurídico nacional, que se coaduna com as normas estrangeiras e condiz com tratados e convenções internacionais, vigora o regime geral de proteção aos segredos de negócio, pelo qual estes são protegidos por tempo indeterminado, enquanto permanecerem na condição de segredo. Dentre as informações sigilosas que gozam da proteção legal conferida aos segredos de negócio, incluem-se os dados de testes realizados para a comprovação da segurança e eficácia de certos produtos, além de outras informações técnicas e científicas, por exemplo. Na medida em que determinados produtos necessitam, todavia, de autorização regulatória para serem comercializados, certos dados sigilosos são submetidos ao Poder Público, o que não faz com que deixem de ser tratados como informações confidenciais ou de gozar da proteção conferida pelo ordenamento jurídico.

Em determinados casos, considerando os princípios constitucionais que regem a ordem econômica e outros interesses constitucionalmente protegidos, as autoridades regulatórias, em observância à legislação específica e na ausência de direitos de exclusividade, podem autorizar o registro de produtos equivalentes, concedidos em parte com base em informações apresentadas anteriormente pelo inovador – isto é, por empresa concorrente – quando do registro do produto de referência. Isso significa que os requerentes que busquem registrar produto equivalente não precisam necessariamente realizar os mesmos testes de segurança e eficácia realizados pelo inovador para obter autorização regulatória. Isto é, na ausência de direitos de exclusividade, poderão eventualmente produzir e comercializar um produto-cópia, bastando, grosso modo, a comprovação de que o genérico é equivalente ao produto de referência, devendo, portanto, ser igualmente seguro e eficaz.

No entanto, como os dados produzidos pelo inovador são protegidos, e uma parte deles permanece confidencial mesmo quando o seu aproveitamento por terceiros passa a ser permitido, a legislação somente autoriza o registro de produto equivalente com base nos dados anteriormente apresentados pelo inovador após o decurso de determinados prazos. Dessa maneira, busca-se balancear os interesses dos proprietários dos dados protegidos com outros igualmente relevantes. Por um lado, permite-se o excepcional aproveitamento, pelos concorrentes, desses dados, os quais, do contrário, seguiriam protegidos à luz do regime geral que abarca os segredos de negócio, isto é, por tempo indeterminado ou até que deixassem de ser segredo. Por outro lado, esse aproveitamento só ocorre após o decurso de determinado prazo, de modo que se assegure um significativo “lead time” ao proprietário dos dados para também resguardar os seus interesses e garantir o incentivo à custosa produção de informações essenciais para a comprovação de segurança e eficácia de determinados produtos, sendo certo ainda que parte dos dados continua sendo sigilosa mesmo após o término do referido prazo legal.

Assim, as informações acerca de produto de referência produzidas pelo detentor do registro pertencem ao gênero dos segredos de negócio, sendo protegidas nos termos do ordenamento jurídico. No entanto, após o decurso do prazo de proteção, o requerente de registro de produto equivalente pode se aproveitar dessas informações para a obtenção do registro equivalente, salvaguardando-se o sigilo de parte das informações mesmo após o decurso dos referidos prazos, na forma da lei.

Dessa maneira, distinguem-se, nesse contexto específico, duas espécies do gênero segredo de negócio: (i) os dados proprietários referentes aos resultados de testes de segurança e eficácia de produto, apresentados como condição para obtenção do registro de comercialização, que são excepcionalmente passíveis de divulgação após o decurso dos prazos legais, e (ii) os dados regulatórios confidenciais, que são as demais informações técnicas ou científicas eventualmente apresentadas por exigência das autoridades, visando a esclarecer processos ou métodos empregados na fabricação de produtos ou na obtenção das informações ou dados regulatórios, que permanecem sob o regime geral dos segredos de negócio e mantidas em sigilo por tempo indeterminado.

O tal “lead time” conferido pela legislação, como dito, almeja compensar minimamente o inovador pelos custos e riscos incorridos na produção dos dados que comprovam a segurança e eficácia de seus produtos, e que depois deste prazo poderão ser objeto de utilização ou aproveitamento por parte de terceiros. Evidentemente, na ausência de outros direitos de exclusividade, esse “lead time” não impede o registro de produto concorrente a qualquer momento. Basta, para tanto, que os competidores produzam seus próprios dados suficientes para comprovar a segurança e eficácia de seus produtos. Caso queiram, entretanto, fazer uso, ainda que indireto, dos dados produzidos e anteriormente apresentados pelo inovador, terão que respeitar os prazos previstos na lei.

Em resumo, o regime legal permite que o concorrente que almeja comercializar produto genérico usufrua, ainda que indiretamente, dos dados proprietários do inovador, os quais, de outra forma, não poderiam ser objeto de aproveitamento por constituírem segredo de negócio, protegidos, de acordo com o regime geral, por prazo indeterminado. Naturalmente, isso representa uma enorme vantagem para o concorrente, que “pega carona” nos investimentos realizados pelo inovador para produzir tais dados.

No Brasil, a proteção aos segredos de negócio e, mais especificamente, aos dados regulatórios em geral, é conferida pela Constituição da República, pela Lei da Propriedade Industrial (lei 9.279/96) e por tratados internacionais devidamente internalizados ao ordenamento jurídico. Particularmente, no que se refere a produtos de uso veterinário, fertilizantes e defensivos agrícolas, a proteção conferida aos dados regulatórios é detalhada ainda pela lei 10.603/02, que em seu artigo 4º limita a proteção a parte dos dados proprietários a 5 ou 10 anos contados da publicação da concessão do registro do produto de referência. Entretanto, tal dispositivo também estabelece, excepcionalmente, a possibilidade de ocorrer a expiração antecipada da proteção quando houver a “primeira liberação das informações em qualquer país”, desde que tenha decorrido o período mínimo de 1 ano de proteção.

Nesse cenário, o presente artigo tratará acerca do sentido e dos efeitos da expressão “primeira liberação das informações em qualquer país”, considerando a entrada em vigor no dia 27 de março de 2021 do Regulamento (EU) 2019/1381 de 20 de junho de 2019, “relativo à transparência e sustentabilidade do sistema da EU de avaliação de risco na cadeia”, alterando, dentre outros estatutos da Comunidade Europeia, o Regulamento (CE) 178/2002. Esse último, por sua vez, é responsável, no âmbito da União Europeia, por “determina[r] os princípios e normas gerais da legislação alimentar, cria[r] a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos [EFSA] e estabelece[r] procedimentos em matéria de segurança dos gêneros alimentícios”.

Essencialmente, as mudanças advindas através do Regulamento (CE) 2019/1381 na legislação alimentar da Comunidade Europeia visam conferir maior transparência ao que o Regulamento (CE) 178/2002 se refere como “análise de risco”, o qual corresponde a um processo constituído pelas atividades de avaliação de risco, gestão de risco e comunicação de risco. Todas essas relacionadas ao procedimento de exame de segurança dos gêneros alimentícios e dos alimentos para animais conduzido pela autoridade reguladora competente no âmbito da União Europeia.

Em especial, o Regulamento (CE) 2019/1381 tem como objetivo aumentar o nível de transparência com relação à atividade de comunicação de risco por parte da EFSA. A fim de alcançar esse objetivo, o Regulamento em tela determina, conforme item 28 do preâmbulo, que “deverá assegurar-se que são disponibilizados ao público de forma proativa e de fácil acesso, o mais cedo possível, todos os dados científicos e informações de apoio aos pedidos de autorização ou de aprovação ao abrigo do direito da União, bem como para outros pedidos de produção científica”. Assim, a questão que endereçaremos neste artigo é se a dita “disponibilização” acarretaria a “liberação” prevista no artigo 4º da lei 10.603/02, o que faremos neste artigo.

 

Artigo publicado no Migalhas. Clique aqui para conferir na íntegra.

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